Rádio O Dia PB

Compartilhe as últimas notícias do Brasil!

Contava seis. A turma da noite preparava-se para mais uma ação de benefício aos mais

necessitados. Alimento do corpo e da alma. Pastoral dos Servos Pobres. Equipe quase

pronta, seis, teria contado a Irma Da Paz. Falta o Paulo, cadê o Paulo? – questionou ela,

quase em um tom de necessidade.

Ele, o senhor antítese, era assim que carinhosamente a jovem noviça o chamava. Um

‘batismo’ que só veio seis meses depois logo que se conheceram, quatro anos antes.

Exatamente no dia de São Francisco, padroeiro da comunidade. Apresentados pelo Frei

Fausto, o primeiro instante foi de repulsa e estranhamento. O rosto de Paulo, seu

pseudônimo, viria descobrir que seu verdadeiro nome era Rilawar – era puro e cativante,

juvenil, diria. Pele clara e traços bem definidos, algo que contrastava com as marcantes

tatuagens que tomavam forma desde o seu pescoço e se evidenciavam por todo o braço

esquerdo.

Pensou a princípio se tratar de um ex-viciado, cheio de gírias, agora recuperado pelo

caminho da espiritualidade. Ledo engano. De fala tranquila, era um homem que

respeitava as palavras. Até onde lembrava nunca se ouviu Paulo dizer um palavrão. Seu

único vício era recitar discursos de Dom Hélder Câmara em horas de folga,

principalmente aquele proferido no ano de 1964 quando desembarcou em Jaboatão dos

Guararapes para se tornar arcebispo de Olinda e Recife, e seguido por milhares de

pessoas, afirmou entusiasticamente – “Não vim aqui para ser servido, vim para servir”.

A repulsa, logo cederia espaço à admiração e logo em seguida um sentimento estranho

para uma noviça, um carinho estranho que não permitia estar longe daquele estranho

anjo.

Em comum entre os dois a devoção por São Francisco de Assis e Santa Clara, esta

última que teria sublimado sua paixão pelo santo reformado, abraçando a causa

espiritual pelos mais pobres.

Sempre ao fim de cada trabalho de assistência aos moradores de rua, os próprios

membros da pastoral, após uma oração de agradecimento, provavam da própria sopa. E

aí se permitiam conversar amenidades que não obrigatoriamente princípios católicos. A

Irmã Da Paz e Paulo eram harmônicos em qualquer assunto. A admiração mútua era

evidente, e isto era notório aos olhos estranhos. Amavam-se pelo simples fato de

aprender um com o outro. Esse era o motivo.

Foi Paulo quem apresentou todo o repertório do maestro americano Burt Bacharach à

Irmã Da Paz e através das suas músicas a sua relação com o cinema. Certa vez em um

Baile de Formatura de estudantes de uma das comunidades assistidas, dançaram juntos

um dos sucessos do Maestro, a canção I Say a little Prayer (Eu faço uma pequena

oração). Sentiram-se tão bem ali, enquanto durava a canção, que em segredo

prometeram que aquela seria a canção dos dois e que a vida perdoasse aquilo que a

lógica não conseguia explicar. Seria o máximo de proximidade que teriam.

Paulo era cearense, natural de Fortaleza, e se orgulhava por ser conterrâneo de Dom

Hélder Câmara. Era professor no Curso de Geografia, concursado pela Universidade

Federal. Já Irmã Da Paz, ou Maria do Socorro Paz, mesmo vocacionada para a

religiosidade, conseguiu forma-se como Enfermeira, chegando ao cargo de chefe do

Setor do Hospital Filantrópico da cidade. Falavam que sua mansuetude e seus olhos

claros lembravam Dona Zilda Arns. Assunto que a encabulava, para não dizer chateava.

Paulo era divorciado e pai de uma garota de 13 anos, Priscila. Dizia-se exausto

emocionalmente para novas relações, preferia a solitude. Irmã Da Paz era casada com

seu ofício, assumindo ainda dúvidas sobre sua vocação, mas servir era algo que falava

mais alto ao seu coração.

O professor justificava o pequeno atraso, cinco minutos apenas, pois tinha ido adquirir

mais números do livro “Os Passos do Pastor”, recortes biográficos de passagens de

Dom Hélder, que costumava distribuir com os seus irmãos de dificuldades. A esperança

em letras, como costumava dizer.

Naquela noite, iriam distribuir sopa e agasalhos aos poucos moradores de uma

comunidade destruída pelo tráfico. A guerra entre Polícia e traficantes resultaria na

evacuação da comunidade, restando apenas aqueles que aguardavam um lugar definido

pela Prefeitura onde recomeçariam suas vidas, longe do conflito. O líder comunitário

teria dado passe livre para a Pastoral atuar aquela noite. Logo após a oração inicial, toda

a equipe, formada pelo professor Paulo, Irmã Da Paz, um casal de médicos e três frades,

buscaria pelas vielas da comunidade corações famintos de comida e esperança.

E foi num destes becos que Paulo, motivado a conversar com um jovem que fumava

crack e que não tinha sequer coordenação motora para levar a colher de sopa à boca,

tamanho o efeito da droga no corpo do dependente, acabou se afastando do grupo.

Sua fé e seu humanismo seria o seu maior algoz naquela noite. O pobre dependente,

também era um olheiro do chefe do tráfico naquela região para evitar que gangs rivais

ocupassem aquele território. Paulo era observado por terceiros e não sabia. Recebeu o

primeiro tiro pelas costas, vindo de uma arma com silenciador. Caído, sem entender o

que o havia derrubado, tentou puxar o livro do bolso de trás da calça. O segundo tiro

seria na cabeça. A movimentação no local era calculada. Ninguém nunca mais o veria.

Seria dado como desaparecido pela própria Polícia. Seu corpo teria sido levado ainda

naquela noite, para o “micro-ondas”, local onde eram incinerados os corpos de

traficantes de gangs rivais. As tatuagens que nunca permitiram ao professor Paulo doar

sangue, talvez proporcionassem dúvidas sobre suas intenções naquela noite.

Mesmo sem nunca saber do seu paradeiro, e o caso nunca ter sido resolvido pela

Polícia, Irmã Da Paz ainda se surpreende quando a lembrança traz a figura do Professor

Paulo ou em algum lugar ela ouve a canção que fez seu coração acelerar por um

homem…

Comentários

comments