(Para tornar essa crônica mais interativa acesse
https://www.youtube.com/watch?v=1MnuW9fXWF4 e ouça a canção citada no texto
enquanto lê)
Porque o tempo é apenas um vácuo numérico
(autor desconhecido)
Acomodou-se na poltrona semiacolchoada daquele aeroporto. Na prática, um ambiente
conhecido já que tantas vezes, a trabalho, cruzou aqueles portões de embarque. Como
jornalista aprendeu com a observação alheia, lição dos orientais. A vida sem metais era
mais leve e menos burocrática na hora do embarque. Mocassins sem meias, blusa
desensacada, relógio e moedas na bagagem de mão.
A notícia do atraso em seu voo, por duas horas, não o tirou do sério. Estava de férias. A
primeira depois do fim do seu casamento. Do divórcio amigável levou apenas os
poucos livros, e o transtorno de ansiedade generalizada, adquirida em noites de
expectativas, onde as dúvidas, as mágoas e o silêncio o acompanhavam. A famosa TAG
o fazia provocar tsunamis em copos de whisky todas as vezes que os tremores o
visitavam. Da companheira que virou amiga, a certeza de que aquela seria sua única
história que teria se dedicado de corpo, neurônios e alma. O amor era um produto de
embalagem bela, mas de conteúdo complexo, a ser provado apenas uma vez.
Mesmo estando no ano de 2016, a “tábua de salvação” para não cair em depressão pós-
casamento foi fincada há trinta e um anos. Seus dois amigos de infância, daquele
inesquecível ano de 1985, depois seriam sem pudor suas “muletas” emocionais diante
de um processo difícil de desapego. Reinterpretar aquela situação tão dolorosa na alma
com risos e ao lado de amigos foi uma onda necessária para que seu coração não se
tornasse submerso em culpa e frustração. Além disso, teria se descoberto na corrida, um
esporte que o fez trocar a Noradrenalina e o Cortisol pelo bem-estar da Serotonina e
Dopamina. Dizia que, correndo alcançou o seu sorriso. Play List atualizada, já que não
corria sem música, iria viajar para competir em um percurso de 10 km em uma cidade
litorânea do Rio Grande do Norte, tendo como companheiros seus dois “anjos da
guarda”, que lá já estavam praticando o etílico esporte de “levantamento de copo”,
traduzido em tremidas selfies.
Nos aeroportos, buscava sempre a leitura de um livro, para espantar diálogos chatos,
com gente que não veria nunca mais. Estava difícil a concentração, e logo em duas
horas de espera?! Tentou abstrair e de repente sentiu seu coração ser levado por um dos
hits que mesmo lançado em 1979 marcaria a sua infância – ‘Rock with you’ do Michael
Jackson. Só que ali era uma nova versão, e com convicção tão afetivamente feliz quanto
a original. A voz era feminina, e não estranha. O som vinha de um tablet de uma
simpática mulher, com seus 30 anos. Foi atrevido e perguntou: Quem canta? Ela tomou
um susto, não quis ser deselegante e respondeu: Patrícia Marx. Ele riu, e tinha certeza
de que aquela voz que tanto embalou seus hits infantis, havia sumido para sempre.
Pediu o link para acessar pelo celular e ela replicou que poderia ser pelo WhatsApp.
Sem problemas, respondeu ele. Justificaria aquele incomodo pela importância daquela
música em suas memórias. Seu primeiro baile naquele ano de 1985, aos 11 anos, um
beijo precoce dado por uma menina mais velha e jamais esquecido, pelo fato de ter sido
engraçado ver outra língua entrar na sua boa sem pedir licença ou explicações.
Ela se divertiu com a justificativa, e disse que aquele período também a tinha marcado…
era (ou foi?) o ano do seu nascimento.
Olhou-a de forma criteriosa, sem intenção. Seu sorriso lembrava a apresentadora de um
telejornal. De gestos finos, desenhava com as mãos tudo o que falava. Era bela por ser
espontânea, transmitia elegância e articulações nas ideias.
Foi um ano de muitos acontecimentos, para o Brasil, disse ele.
Paradoxais, rebateu ela. No dia em que nasci, 21 de abril, meu pai chorou a morte de
Tancredo Neves.
Ele lembrava a imagem do porta-voz, Antônio Brito, anunciando em cadeia nacional a
morte daquele que representava um novo sonho político para o Brasil.
O sinal da redemocratização viria pelo caminho mais lúdico: as artes. O Rock In Rio
em janeiro daquele ano, e Roque Santeiro, em junho, cinco meses depois. De uma certa
forma ela dizia ter ido ao Rock In Rio. Sua mãe era uma daquelas grávidas que pintou a
barriga com um símbolo hippie numa alusão direta a Woodstock e que viria ilustrar
algumas revistas que cobriram o festival na época. Era a primeira noite que marcaria a
história do festival , quando o Fred Mercury, líder da Banda Inglesa Queen, regeu mais
de 270 mil vozes cantando a música Love of my life.
Ele lembrava ter visto essa cena pela televisão numa transmissão ao vivo, ao lado do pai
que naquela noite exalava Mens Club 42. Mas também foi no festival que descobriu o
que era autoestima quando o hit 'Óculos', da então desconhecida banda Paralamas do
Sucesso, passou a ser o hino de todo nerd que usasse um simbólico “suspensório de
lentes” no meio do rosto. Foi um jovem debandado pelas bandas de Rock Nacional.
Ela viu que ele não era um saudosista, mas puxou muitos assuntos sobre aquele ano.
Falou de um filme que adotou como um coringa, De Volta Para o Futuro, que viria a
assistir, 12 anos depois, numa Sessão da Tarde. Já ele que gostava da trilogia, se
orgulhava de ter assistido as aventuras do Marty McFly e o Doc Brown na tela grande.
Conversaram sobre tantos assuntos que mais pareciam ser amigos de longas datas. Tão
instigante cada tema que mal se deram conta que não tinha se apresentado. Só soube que
ela era historiadora por causa da defesa de sua tese de Doutorado, sobre a abertura
democrática no Brasil pela Dramaturgia – o caso Roque Santeiro de Dias Gomes e
Aguinaldo Silva. Aliás, a defesa de sua pesquisa justificava a sua viagem, por
coincidência da cidade de onde ele tinha vindo. Destinos cruzados. A espontaneidade da
conversa abreviou o tempo e aliviou almas. Sentia ele o sabor dos encontros casuais das
comédias só presente nas comédias inglesas.
Ele embarcou primeiro, sem antes falar o quanto o ano de 1985, da geração new wave,
ainda mandava sinais além do tempo, e que adorava quebrar regras. Ela não entendeu.
Ele disse antes de partir: se a Patrícia Marx fez aquilo com o Michael Jackson, imagina
quando ela gravar Mal de Mim, do Djavan.
Dormiu, durante o voo, com a leve sensação de ter tido um agradável presente da vida,
aquele encontro. Ao ser recebido pelos dois amigos, foi logo interpelado sobre aquele
brilho estranho e nos olhos. Ou tinha bebido durante o trajeto, ou tinha visto passarinho
azul. Ele sorriu, mas negou a si mesmo qualquer outra intenção… o tremor do celular no
bolso avisava que a conexão com o mundo virtual havia voltado. O primeiro recado no
WhatsApp de um número desconhecido trazia um afetivo lembrete… “Boa viagem…
quebre as regras, 1985 chances de nos revermos. Prazer. Paula”. Para ele, não precisaria
de uma máquina do tempo como o DeLorean DMC-12 do filme. Suas memórias o
levariam aquele encontro quando bem quisesse.